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4 de setembro de 2007

Há ainda alguns que falam.

"O país dos pequenos Salazar"
Por Miguel Sousa Tavares

A mim pouco me importa que alguns milhares de ignorantes se tenham servido da estação pública de televisão para decretarem a sua verdade de que Salazar foi o maior português de sempre. Vivo bem com os saudosismos idiotas — o que me faz espécie é a persistência do espírito salazarento. Que haja sempre quem se deleite em proibir e uma multidão que se conforme em obedecer, sem questionar a legitimidade das proibições. Dou-vos vários exemplos.

1. Subia a Álvares Cabral, em Lisboa, quando reparei que dezenas de carros, estacionados em espinha, estavam todos com as rodas bloqueadas pela nova polícia da EMEL. É verdade que, estacionados em espinha, as rodas da frente ocupam o passeio, o que é ilegal. Mas a rua tem passeios largos e desde sempre ali se estacionou assim, porque isso permite lugar para o dobro de carros, numa zona da cidade, de escritórios e habitação, onde, desde o Marquês até Campo de Ourique, não existe um único estacionamento público. Mas o que mais me indignou na cena foi a hipocrisia dela: para poderem levar avante a sua tarefa repressora sobre aqueles que precisam de ir trabalhar ou recolher a casa, duas carrinhas dos polícias municipais ocupavam uma das duas vias de circulação, contribuindo para afunilar o trânsito e cometendo aquilo que a nós seria punido como infracção grave. Mas eles, nas tintas: desde que descobriu este negócio das multas de cobrança imediata e valor acrescentado pelo preço de ladrões do desbloqueio das rodas, e desde que descobriu o dinheiro fácil que conseguia instalando radares para multar excessos de velocidade absurdos nas poucas ruas onde se pode circular sem ser a passo, a Câmara de Lisboa está radiante com a sua nova fonte de receitas. E os polícias da EMEL radiantes estão com este reforço dos seus vencimentos através da participação num negócio que é tão rentável que até justifica uma luta surda entre a Polícia Municipal e a PSP, que dantes tinha o monopólio da caça à multa.

Agora, em cada esquina da cidade, vejo polícias, até das ‘operações especiais’ da PSP, dedicados a perseguir automobilistas e olhando-nos com um ar feroz, como se fôssemos criminosos de alta perigosidade. Entretanto, e como está à vista de todos, Lisboa está uma vergonha pública, uma cidade sem planos nem ideias, sem limpeza nem dignidade, com uma vereação que se atola em sucessivos escândalos e querelas políticas de vão de escada. Nada funciona, menos o zelo de perseguir quem não tem defesa. Felizmente, não há o luar, mas há a luz: esta incrível luz de Lisboa, que eles não conseguem reprimir, nem bloquear, nem multar.

2. Não conheço desporto mais bonito do que a caça submarina. Tive anos a fio em que, durante as férias de Verão, que era a única altura em que podia praticar, chegava ao fim da época com não mais do que meia dúzia de peixes capturados. Mas deixara debaixo de água dezenas de horas de prazer, de deslumbramento, de terapia intensiva contra um ano inteiro de cansaços ou frustrações. Calculo que em Portugal todo o volume anual de capturas por mergulho ande à roda de qualquer coisa como 0,000001% de todo o peixe pescado. Mas também isso nos querem tirar: na Costa Azul, da Arrábida à Praia da Foz, toda a pesca submarina está interdita, e o mesmo se prepara para a Costa Vicentina e Litoral Alentejano. De caminho, vai sendo banida também — através de uma malha sinistra de burocracias, exigências, especificações, exames, qualificações e limitações de toda a ordem — a pesca desportiva em geral, a pesca de sobrevivência na costa, a partir de terra, e também a navegação de recreio das pequenas embarcações que servem de apoio à pesca desportiva ou apenas de divertimento.

“Com todo o orgulho”, o ministro do Ambiente foi pessoalmente apadrinhar o início da construção em massa no litoral alentejano e também deu o seu apoio a projectos industriais de aquacultura no litoral, de enorme dimensão e imenso impacto sobre os habitats marinhos. Mas um tipo querer mergulhar para apanhar um sargo ou um polvo, um tipo ocupar os seus tempos livres ou até querer complementar os seus fracos rendimentos em actividades de pesca artesanal, um tipo ir apanhar percebes às rochas de Vila do Bispo, isso é que não!
Estamos a caminho de ser um antigo país de marinheiros e pescadores onde a Marinha de Guerra, através da Polícia Marítima, tem a nobre missão de perseguir os que ainda sabem e gostam de navegar ou de pescar.

3. Para renovar a licença de uso e porte de arma de caça em terra (uma actividade já altamente regulamentada), são agora necessários desde 12 a 30 documentos — entre os quais documentos a fazer prova de que não se tem cadastro de condução sob álcool ou consumo de drogas. É também necessário pagar cerca de 400 euros e frequentar um curso para provar (ao fim de 10, 20 ou 30 anos a caçar) que se sabe mexer numa arma de caça. Mais interessante ainda, os ‘professores’ do curso são polícias da PSP, os quais, a menos que sejam caçadores também, percebem tanto de armas de caça como eu percebo de armas de guerra: ou seja, nada.

E, porque se entende que os caçadores são bêbados crónicos e criminosos armados em potência, tomou-se uma série de disposições, qual delas a mais inconstitucional, para os manter sob estreita vigilância e controlo. Assim, quando se deslocam de carro, com a arma desmontada dentro de um estojo, o gatilho tem de ir trancado a cadeado, não vá metade da arma disparar-se sozinha ou não vá algum assaltante roubar-nos a arma, mas delicadamente não nos exigir a chave do cadeado. Efeito prático disto: dar dinheiro a ganhar a quem fabrica e vende os cadeados ou então estragar uma caçada porque se perdeu a chave do cadeado.

Pior: um caçador (sem arma no carro) que seja apanhado a conduzir com excesso de álcool, para além das penalizações previstas no Código da Estrada, perde o direito a uso de arma de caça, ou seja, perde o direito a caçar, porque se presume que, quando for caçar, irá com excesso de álcool. Pela mesma ordem de presunção, gostava de saber porque ficam de fora outras actividades e profissões onde o excesso de álcool representa um perigo, igual ou maior: os polícias, para começar, os militares, os pilotos de avião, os médicos, os engenheiros, taxistas e motoristas de transportes públicos, os bombeiros, etc, etc.

É tudo? Não. Fique a saber que um caçador que, por exemplo, regresse de uma caçada com outros e venha a dormir no banco de trás do carro pode ser obrigado a soprar no balão e, se acusar mais de 0,5, também perde o direito a poder continuar a caçar. Leu bem: não é só o condutor, são também os passageiros do carro!

E, finalmente, esta pérola de suprema inspiração ditatorial. O legislador quer regular como é que um caçador deve conservar e guardar as armas em casa: dentro de um armário, de características especificadas na lei. Para se certificar que ele assim o faz, a lei conferiu à polícia poderes que lhe permitem, a qualquer hora, bater à porta de casa de um caçador, entrar sem mandado algum e ir vasculhar as suas armas. E não podia faltar: já que ali estão e as armas também, podem fazer ao caçador um teste de álcool na sua própria casa!

Para já, querem-nos proibir de fumar, de ir à pesca, de andar de barco, de poder caçar. De que se lembrarão a seguir estes ditadorzinhos disfarçados de legisladores politicamente correctos?

2 Ah e tal...:

Maria disse...

Este homem sabe muito!! ganda texto.
bjs, Maria.

diariodebordo disse...

A ditadura disfarçada em que vivemos chega-nos de diversas formas. Experimenta dizer mal do Sócrates quando estiverees a passar por alguém k sabes k pertence ao governo ou por um polícia... Pode ser que comeces a pensar que Salazar ao menos assumiu-se como ditador. Os que agora lá estão não são mais do que uma fachada para o que existe realmente.