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15 de fevereiro de 2010

Carnival Is Like Christmas.

Eram cerca das duas da manhã da primeira sexta-feira de Janeiro quando o telemóvel tocou. Foram mais de cinco SMS de seguida, todos com o mesmo conteúdo ? qualquer coisa como: "Já não és um dos nossos". Reconheci o tom, identifiquei a táctica e os remetentes. Não fiquei surpreendido. Pus o telemóvel no silêncio e fui dormir, mais mensagens daquelas viriam. Eu ia faltar ao Carnaval, o castigo começava.

Torres Vedras é uma cidade com vida própria, suficientemente longe de Lisboa para não ser subúrbio, suficientemente perto da capital para se julgar cosmopolita. Tem cerca de 20.000 habitantes, um MacDonalds, poucos problemas sociais (pobreza, criminalidade, tuning), um centro comercial, quatro videoclubes e um presidente da câmara cigano. Há uma certa burguesia decadente, gente com comboios de apelidos, mas zero de nobreza e um clero pouco respeitado; há muitos doutores, professores e engenheiros, mas poucos pais jovens insistem em tratar os filhos por "você".

Durante 360 dias por ano nada de notável acontece, a não ser que um fenómeno meteorológico invulgar arrase uns hectares de estufas e traga ao concelho os canais de notícias. Durante a noite há os mesmos três bares, a mesma discoteca e as mesmas 20 pessoas de copo na mão - um célebre bar no centro da cidade celebrava às quintas-feiras a "Noite Normal". Depois há cinco dias por ano em que a cidade, e as pessoas, se transformam.

Jejum e resguardo Quando somos garotos os nossos pais mascaram-nos porque é divertido - para eles. Fui palhaço, cozinheiro e cowboy até à minha mãe me deixar decidir qual iria ser a minha máscara. Nesse dia deixei de gostar do Carnaval: mascarei-me de jornalista. Sabiamente, ela apontou o facto de um repórter não ser mais do que uma pessoa normal de microfone ou bloco de notas na mão. Eu insisti. Ela vestiu-me um casaco feio. Avancei confiante para o recreio da escola e enfrentei a pior pergunta que alguém pode fazer nesta época: "Estás mascarado de quê?"

Quase duas décadas depois viria a ruborescer da mesma maneira quando, no meu primeiro estágio em jornalismo, um leitor irado notou uma troca de nomes entre o segundo e terceiro melhores classificados nas distritais de columbofilia. "Que espécie de jornalista é você que trata assim o segundo desporto com mais praticantes em Portugal". Foi em 2005 no semanário católico "Badaladas", o mais lido na região Oeste, jornal que na sua edição desta semana definia com entusiasmo os dias de festa que se aproximavam: "O Carnaval apresenta-se como uma pausa no período antes da Quaresma, sendo por isso um interregno na quadra marcado pelo jejum e pelo resguardo". Era ver o sol a nascer ontem de manhã e centenas de (des)mascarados com os copos, preocupadíssimos em gozar em plenitude estes dias de recolhimento.

Aqueles que não nascem com o espírito de Carnaval têm duas hipóteses: sair da cidade por cinco dias ou deixar-se levar. Se o gosto pelos bailes de máscaras não está inscrito no seu ADN então ele terá de ser marcado a ferros. Começa cedo.


Sexta-feira de Carnaval (não sei se esta expressão de utiliza em mais algum lado). É nessa manhã que se iniciam as celebrações com o corso das escolas: os garotos de todas as turmas da região desfilam pelas ruas da cidade vestidos de acordo com o tema definido. Os fatos são feitos nas aulas. Os resultados são desastrosos. E chove sempre. Qualquer puto de 11 anos quer sair à rua mascarado de stormtrooper da Guerra das Estrelas, verdade? Não, quando o capacete é um garrafão pintado de branco e cortado na frente e a espingarda laser um pedaço de madeira cortado na aula de EVT - usar a serra eléctrica foi o ponto alto desse Carnaval. Choveu o desfile todo.

Não há festa como esta Uma das razões pelas quais o Carnaval de Torres é o melhor do mundo é simples: nenhum torreense alguma vez foi a outro. O título de "o mais português de Portugal" terá também alguma coisa a ver com esta imobilidade, à qual há a somar a falta das escolas de samba, de actores brasileiros, coqueiros e temperaturas acima dos 15 graus. Outro mito alega que a este Carnaval vem gente dos quatro cantos do mundo, colocando-o a par de festas que estão em montras de agência de viagem como o Carnaval do Rio ou o de Veneza. É verdade que vem gente de todas as latitudes, mas são todos torreenses.

As datas do Carnaval são marcadas na agenda com a mesma alegria que um imigrante assinala "aqueles" dias de Agosto. Tal como uns tios que foram para o Canadá, os torreenses têm uma alegria incontida em voltar à terra uma semana por ano para rever amigos sem conseguir encontrar nenhuns defeitos. O meu amigo A dá aulas de ténis de mesa numa cidade norueguesa cujo nome ninguém consegue pronunciar e largou o mesatenismo para vir à festa. Sei disso porque recebi um SMS ofensivo.

Epílogo
Acabei por ir ao Carnaval na noite de sábado para domingo. Não ia ficar bem comigo. Transformou-se para mim no que a Wikipedia define como um "gosto adquirido": "Algo que dificilmente é apreciado por alguém que não tenha tido uma exposição significativa." Tenho 26 anos de "exposição". É significativo.

Agora que termino este parágrafo penso que teria sido boa ideia ter tirado a semana de férias e ficar esta noite e a próxima. Lá fora ouvem-se os bombos dos Zés Pereiras, buzinas e cornetas. Tenho uma ligeira dor de cabeça. Uma avioneta sobrevoa a cidade com uma manga onde se lê: "Farmácia Santa Cruz. Cuide de si". Que apropriado.

Texto escrito pelo jornalista Luís Leal Mirando do jornal i

1 Ah e tal...:

Homem da faina disse...

Luis Leal Miranda. Ou Frodo Baggins. Ou Casper. Ou o tipo que foi assaltado comigo duas vezes no mesmo dia, na cidade universitária, com um lapso temporal de 2 horas.

E é um escritor do caraí.