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1 de setembro de 2009

The Czar Is Alive.

Às 4h45 da madrugada de 1 de Setembro de 1939, os canhões do cruzador alemão Schleswig-Hosltein abriram fogo sobre as posições polacas em Westerplatte, na então cidade livre de Danzig, hoje Gdansk.

Era o início da primeira batalha da II Guerra Mundial.

Esta tarde, quando o Presidente polaco e o primeiro-ministro da Polónia, Lech Kaczynski e Donald Tusk, receberem os seus principais convidados estrangeiros, o primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, e a chanceler alemã, Angela Merkel, a data e a hora a que tudo começou serão um dos raros dados históricos do conflito em relação ao qual todos estarão de acordo.Mas o primeiro-ministro russo decidiu marcar estas comemorações por antecipação.

Ontem, Vladimir Putin publicou um artigo no jornal polaco "Gazeta Wyborcza", no qual considerou um erro o pacto Ribbentrop-Molotov, assinado entre a Alemanha nazi e a União Soviética a 23 de Agosto de 1939, que tinha uma cláusula secreta ao abrigo da qual as tropas de Estaline ocuparam a zona oriental da Polónia. "Sem qualquer dúvida, podemos condenar o pacto Ribbentrop-Molotov assinado em Agosto de 1939", escreveu Putin. Foi um gesto pacificador num momento em que a polémica sobre as leituras contraditórias das causas da II Guerra Mundial voltou a reacender-se entre a Rússia e vários países do Leste europeu, entre os quais a Polónia.

Em Moscovo, onde o ensino da História está agora submetido aos interesses do Estado, a Polónia é acusada de ter colaborado com os nazis e de ter precipitado a guerra, ao recusar a protecção conjunta da França, da Grã-Bretanha e da URSS. Na Polónia, a II Guerra Mundial só terminou em 1989, quando o movimento desencadeado pelo Solidariedade a partir da cidade de Gdansk levou ao fim do regime comunista na Polónia. Para os polacos, esse é o momento em que recuperaram a liberdade e a sua independência. A mensagem de Putin - que aborda também o massacre de 22 mil oficiais polacos pela polícia secreta soviética em Katyin, em 1940 - visa responder a um pedido de desculpas pelo pacto germano-soviético há muito exigido por Varsóvia. Embora declarando a intenção de combater as revisões da história, Putin não deixa, no documento, de justificar os argumentos revisionistas, quando se refere ao tratado de Munique. "Um ano antes, a França e a Grã-Bretanha não assinaram em Munique um famoso tratado com Hitler, arruinando todas as esperanças de formar uma frente comum contra o fascismo?", escreve Putin, referindo-se a essa aliança que continuou a ser negociada até ao Verão de 1939, mas que esbarrou na recusa dos polacos e dos Estados bálticos de serem protegidos de Hitler pelas tropas soviéticas.

A mesma ambiguidade rodeia a declaração sobre o massacre de Katyin, que os tribunais russos nunca aceitaram julgar. "Devemos lembrar-nos em conjunto das vítimas desse crime", escreve Putin. Mas recorda ao mesmo tempo o "destino trágico dos soldados russos que foram prisioneiros dos polacos durante a guerra [entre a Polónia e a URSS] de 1920". Um "virar da página"O ponto forte da mensagem de Putin é manifestar o desejo de que as diferentes leituras da história não envenenem as relações entre Moscovo e Varsóvia. Putin propõe um "virar da página": "O nosso dever em relação aos mortos e à história é fazer tudo para que as relações russo-polacas se libertem do peso de desconfiança e de parcialidade que nos deixaram como herança". E acrescenta que esse virar de página permitirá à Rússia e à Polónia "atingir o mesmo nível elevado de colaboração" que existe hoje entre a Rússia e a Alemanha.

O virar da página também é desejado do lado polaco. Interrogado ontem num encontro em Gdansk sobre a carta de Putin, Lech Walesa, o líder histórico do Solidariedade e antigo Presidente da Polónia, também sublinhou a necessidade de ultrapassar as divergências da história. "Sou um católico praticante. Quantos pecadores não se tornaram santos?", respondeu Walesa, defendendo que russos e polacos estão obrigados a ser bons vizinhos. "Deus fez-nos vizinhos e estamos obrigados a entender-nos". Sublinhando esse desejo de aproximação, disse existirem dois Putins: "Há um Putin bom que quer reformar o seu país e outro que é esse homem do KGB. Qual dos dois vamos apoiar?".Walesa é história viva e é uma figura venerada pelo seu papel na queda do regime comunista, mas há muito que deixou de ser uma personagem relevante no xadrez político polaco. Mas as suas palavras são o sintoma de um clima de menor desconfiança em relação ao vizinho russo.

A eurodeputada Rosa Thun, durante anos uma activista contra o regime comunista, sublinhou, em declarações ao PÚBLICO, esse desejo de não deixar que a história interfira no presente. "É muito bom que Putin venha. Será bem recebido. Não devemos usar a história como um instrumento para nos agredirmos uns aos outros. A Rússia trata a Polónia de forma muito séria, sobretudo enquanto membro da União Europeia. Haverá muitas controvérsias, mas as relações estão a tornar-se mais intensas e a melhorar, mesmo continuando a existir capítulos difíceis".Revisionismo mal recebidoApesar das tendências apaziguadoras, as revisões da história são muito mal recebidas na Polónia. "O que está a acontecer é surpreendente e assustador", comenta o historiador polaco Jan Rydel, da Universidade de Cracóvia, num encontro com jornalistas. "Mas não nos podemos esquecer que apenas os historiadores de segunda linha estão envolvidos nessa releitura".

Quando discursarem hoje em Gdansk, Angela Merkel e Vladimir Putin deverão exprimir este ambiente de boa vizinhança entre os inimigos de ontem - uma novidade no caso russo - mesmo que as diferentes leituras da história continuem a sublinhar as fracturas do passado. Mas o outro acontecimento político das cerimónias de Westerplatte será a confirmação do maior distanciamento de Varsóvia em relação aos Estados Unidos, na sequência da polémica em torno da secção do escudo antimíssil norte-americano, destinado a proteger a Europa de um ataque nuclear de um Estado pária como o Irão, mas que a Rússia vê como uma ameaça.

A Polónia aceitou receber uma secção do escudo antimíssil, perante a hostilidade declarada de Moscovo. Mas uma investigação do "New York Times" divulgada na semana passada revelava que a administração Obama ainda não se decidiu se vai avançar com o escudo. Washington precisa do apoio de Moscovo nas duas principais frentes em que está envolvida: a guerra no Afeganistão e o dossier nuclear iraniano, e tem que ter em conta a sensibilidade da Rússia quanto ao escudo, sublinhavam fontes do Pentágono citadas pelo jornal."É claro que a Europa de Leste não está no epicentro desta administração americana", lamentou ao New York Times o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros polaco, Piotr Paszkowksi.

Coube ao mesmo porta-voz anunciar que os EUA estariam representados nas cerimónias de hoje em Gdansk por um antigo secretário de Estado da Defesa de Bill Clinton, William Perry. Uma representação de perfil baixo que confirma essa quebra de importância do Leste europeu na agenda de Washington.

Texto retirado do Público.

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